Assunto: Análise crítica da proposta de exclusão do cônjuge da condição de herdeiro necessário no projeto de reforma do Código Civil
I – INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar, sob a ótica doutrinária e constitucional, a proposta de modificação do Código Civil, em trâmite no Senado Federal, que pretende suprimir o cônjuge do rol de herdeiros necessários (art. 1.845 do Código Civil). A medida é objeto de intensos debates no meio jurídico, especialmente em razão do impacto que poderá provocar sobre o equilíbrio entre autonomia privada, função social da família e proteção do cônjuge sobrevivente.
II – CONTEXTO LEGISLATIVO E NORMATIVO
A Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL) foi a responsável pela elaboração do anteprojeto que, atualmente, está tramitando no Senado Federal, sob o nº 4/2025. Os juristas propõem alterações relevantes na sucessão legítima, visando ampliar a liberdade testamentária do autor da herança. O ponto mais controverso é a exclusão do cônjuge da categoria dos herdeiros necessários, atualmente prevista no art. 1.845 do Código Civil de 2002.
Importa salientar que a inclusão do cônjuge como herdeiro necessário foi uma conquista da legislação civilista contemporânea, após intenso debate doutrinário e legislativo, pautado na valorização da família como entidade afetiva e socioeconômica.
III – FUNDAMENTOS FAVORÁVEIS À EXCLUSÃO DO CÔNJUGE COMO HERDEIRO NECESSÁRIO
Entre os argumentos que sustentam a reforma proposta, destacam-se:
1. Primazia da autonomia da vontade – O projeto privilegia a liberdade do autor da herança em dispor de seu patrimônio, aproximando o sistema sucessório brasileiro de modelos estrangeiros que adotam o princípio da livre disposição como regra.
2. Instrumentos jurídicos alternativos de proteção patrimonial – A proposta enfatiza que o cônjuge já possui meios adequados de proteção, como a meação decorrente do regime de bens, o direito real de habitação e outras previsões testamentárias.
3. Natureza contratual da relação conjugal – A relação matrimonial é compreendida, sob essa ótica, como vínculo contratual e dissolúvel, não justificando o enquadramento do cônjuge na mesma categoria de ascendentes e descendentes, cuja ligação biológica é permanente.
4. Redução de conflitos sucessórios – Aponta-se a tendência de evitar litígios entre cônjuges sobreviventes e herdeiros descendentes, especialmente em núcleos familiares recompostos.
IV – FUNDAMENTAÇÃO CONTRÁRIA À EXCLUSÃO: PERSPECTIVAS DOUTRINÁRIAS
Parte significativa da doutrina civilista critica severamente a proposta de reforma, sob os seguintes fundamentos:
1. Retrocesso normativo e social – A retirada do cônjuge do rol de herdeiros necessários é vista como retrocesso frente às conquistas obtidas com o Código Civil de 2002, comprometendo a proteção jurídica à entidade familiar e a solidariedade patrimonial construída ao longo da convivência conjugal.
2. Incompatibilidade com a Constituição Federal – A medida afrontaria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar e função social da herança, pilares fundamentais do Direito Civil Constitucional contemporâneo.
3. Risco de desamparo do cônjuge sobrevivente
Uma das críticas centrais à reforma reside no risco de fragilização econômica do cônjuge supérstite, especialmente em contextos de dependência econômica ou de longas uniões conjugais. No entanto, tal preocupação deve ser analisada de maneira crítica e contextualizada.
A proposta legislativa fundamenta-se na existência de instrumentos compensatórios que asseguram a dignidade do cônjuge, mesmo fora da categoria de herdeiros necessários. Entre esses mecanismos destacam-se:
– O direito real de habitação, previsto no art. 1.831 do Código Civil, que garante ao cônjuge o uso do imóvel residencial do casal, com caráter vitalício;
– A meação, assegurada conforme o regime de bens adotado na constância do casamento;
– A possibilidade de disposições testamentárias específicas, como usufruto, legados, fideicomissos, ou instituição como beneficiário de seguros de vida;
– Os alimentos post mortem, previstos em situações legalmente delimitadas.
Conforme destacado por renomados doutrinadores, a medida deve ser compreendida não como um abandono do cônjuge, mas como uma readequação normativa que exige o fortalecimento dos instrumentos compensatórios. Ressalta-se que a segurança jurídica pode ser preservada por meio do planejamento sucessório e da aplicação sensível da autonomia privada, sem que se perpetuem vínculos sucessórios compulsórios incompatíveis com as relações familiares contemporâneas.
Dessa forma, ainda que o risco de desamparo exista, a doutrina moderna aponta caminhos eficazes para sua mitigação sem comprometer os avanços institucionais no campo da liberdade dispositiva.
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A exclusão do cônjuge da condição de herdeiro necessário deve ser debatida com a cautela e profundidade que o tema exige. O atual Código Civil representou um marco na valorização da entidade familiar e na inclusão do cônjuge como sujeito de proteção sucessória obrigatória. Contudo, a proposta de reforma apresenta fundamentos racionais e condizentes com a evolução do Direito Privado, sobretudo quanto à valorização da autonomia da vontade e à possibilidade de proteção por outros mecanismos jurídicos.
Não obstante, a alteração legislativa não deve ser aprovada sem a construção de estruturas jurídicas de compensação adequadas, que evitem situações de vulnerabilidade e assegurem o mínimo existencial ao cônjuge sobrevivente.
Como conclusão, resta plenamente reconhecida a validade técnica da proposta legislative apresentada, restando plenamente necessária uma atenção às salvaguardas normativas, que deverão ser claras, eficazes e garantidoras dos direitos fundamentais, visando não prejudicar o cônjuge que, de acordo com a nova legislação apresentada, ainda pendente de aprovação, retira a sua condição de herdeira necessária do texto normativo.